terça-feira, 26 de março de 2013

7º Ano / 6ª Série - HORA DO CONTO - A Moça Tecelã


A Moça Tecelã 
                                                                                                           (Marina Colassanti)



             Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
                Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
                Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
                Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
               Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
               Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
               Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
               Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
               Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
               E feliz foi, durante algum tempo.
               Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
               — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
              Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordeno u que fosse de pedra com arremates em prata.
             Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
            Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
           — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
           Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo que queria fazer.
            E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
           Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
           A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
           Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

$ Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

!  QUESTÕES SOBRE O TEXTO

1. O conto é um texto curto que pertence ao grupo dos gêneros narrativos ficcionais e se caracteriza por apresentar apenas um conflito, poucas personagens, poucas ações e tempo e espaço reduzido.

a. O texto “A moça tecelã” e um conto ficcional? Por quê?

b. No conto, assim como em outros textos narrativos, o narrador pode ser narrador- observador ou narrador-personagem. Que tipo de narrador o conto “ A moça tecelã” apresenta? Comprove sua resposta com elementos do texto.

c. Quais são as personagens envolvidas na história?
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d. Levante hipóteses: Qual é o tempo de duração dos fatos relatados no conto?
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2. Nos gêneros narrativos, a sequência de fatos que mantém entre si uma relação de causa e efeito constitui o enredo, cujo sentido e progressão são decorrentes do emprego do tempo verbais no pretérito.

9  Observe esse trecho do texto: “Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.”

- Qual o tempo verbal predominante é o pretérito imperfeito. O pretérito imperfeito, nesse caso, indica uma ação passada não concluída, destacando sua duração, ou indica uma ação que se repetia no passado? Justifique sua resposta.
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3. Retire do texto outras palavras e expressões que indicam que as ações da personagem principal, se repetiam no passado.
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4. A progressão da narrativa se faz, principalmente, pelos verbos no pretérito perfeito. Transcreva ( ou aponte) um parágrafo do texto que comprove essa afirmação.
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5. No texto “A moça tecelã” predomina a linguagem conotativa ou figurada.

a. Que figura de linguagem ocorre nos fragmentos abaixo?

“leve, a chuva vinha cumprimentá-la da janela.”   E   “... o vento e o frio brigavam com as folhas...”

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b. Esse tipo de linguagem, figurada, seria adequado a um repórter para anunciar o tempo meteorológico? Por quê?
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6. Localize e transcreva do texto o trecho em que o narrador afirma que a moça foi ficando mais velha, empregando para isso linguagem figurada.
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7. Em dois momentos distintos no texto, o narrador afirma: “Tecer era tudo que fazia. Tecer era tudo que queria fazer”. Qual era o espírito da moça tecelã em cada ocorrência?
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8. O que se pode inferir sobre o marido da tecelã, nessa fala:

a. “Por que ter casa, se podemos ter um palácio?”
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b. Que sentimento do marido levou a moça tecelã a livrar-se dele? Como ela fez isso?
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9. A tecelã idealiza o marido perfeito e transforma-o numa figura concreta com sua habilidade mágica. 

a. Transcreva do texto a passagem do texto em que o narrador descreve o companheiro da tecelã.
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b. Qual a finalidade dessa descrição na narrativa?
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